sábado, 14 de novembro de 2009

Via dei Portoghesi











































Roma
Frente ao Albergo dei Portoghesi, a dois passos da igreja de Sant'Antonio dei Portoghesi

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

O Diabo à solta nas margens do Nango


Porque é que naquele momento eu desisti de fazer uma coisa e fiz outra? O que comanda as nossas vidas? O que é que nos faz tomar uma decisão súbita num determinado segundo? O destino? O simples acaso?
O que me fez, naquele dia tórrido de 1973, decidir repentinamente não subir para a pesada Berliet atascada nas margens do rio Nango? A verdade é que cheguei a colocar a espingarda sobre a caixa e a pôr um pé na roda para subir. Lá em cima, o Gil, impante como de costume ao sol do meio-dia, mãos nas ancas, chamava-me: "Anda para aqui, daqui é que se vê bem."
Não sei o que ele queria ver, a não ser a largueza da mata em redor, as clareiras de capim ressequido. Mas ele era assim: o cabelo loiro quase rapado, os olhos azuis que cintilavam, a boca fina num ricto de desafio e basófia. Ele adorava aquilo, adorava a jactância, o combate, a dureza e a glória da guerra. Era homem de poucas palavras e riso escarninho, que imprimia aos seus soldados um ritmo infernal e uma mística arrogante que apelava à mais masculina das auto-estimas, quase ascético de hábitos, despojado nas exigências diárias, admirador dos grandes feitos. Judeu beirão, idolatrava o general Moshe Dayan e a sua condução fulgurante da guerra dos Seis Dias: costumava encher o peito de ar, arrotar a cerveja e gargalhar tapando um olho com a mão espalmada: "O zarolho! O zarolho é que os topava a todos!"
Porque não ir também para cima da camioneta, juntar-me ao espectáculo? A tensão, o cansaço e o tédio das longas jornadas militares pedem por vezes gestos simbólicos que dêm algum sentido e alento ao que fazemos, nem que sejam de pura encenação. Não há nada de heróico em desatascar uma camioneta presa na lama, mas um pouco de basófia não faz mal a ninguém. Oferecer o peito às balas de algum atirador que andasse por ali era coisa que o Gil adorava fazer.
Mas de repente, resolvi não subir. Estava calor, e a água aquece nos cantis. Decidi que era mais interessante ir mergulhar o meu na corrente do Nango, de água leitosa mas fresca – uma espécie de frappé de campanha. E foi assim que retirei a G3 da caixa da Berliet e me fui agachar na orla do rio, dez metros ao lado.
Tínhamos saído de manhã de Nambude, dois pelotões sob o comando do Gil, como de costume ao raiar da aurora. A coluna mensal de reabastecimento vinha de Mocímboa da Praia, ofegando penosamente pela picada, a passo de homem, seguindo a vanguarda apeada de "picadores" em busca de minas. Como de costume, limparíamos a picada de eventuais engenhos, encontrá-la-íamos a meio do caminho e regressariamos com ela a Nambude, já montados nos carros. Era a forma de se abreviar uma jornada de apenas 40 quilómetros mas que, naquele caminho aberto na mata, por vezes nada mais que rodados lamacentos, chegava a durar um dia inteiro.
O probema era que no ponto de encontro – a passagem do Nango – a placa de cimento que fazia de ponte havia sido destruída dias antes pela guerrilha. Dela restavam apenas pedaços de cimento e ferros retorcidos espalhados na margem. A única forma de atravessar a corrente era a vau. E a primeira Berliet – a mais pesada, equipada como "rebenta-minas" – não conseguiu balanço suficiente e ficou presa à saída do rio. Quando encontrámos a coluna, o focinho da Berliet emergia, desconsoladoramente apontado para cima. Era necessário juntarem-se quantos homens fossem precisos para a empurrar dali para fora e permitir a passagem do resto dos carros – provavelmente, à custa de manobras semelhantes. Tínhamos ali para umas boas horas.
Não me lembro em que pensava enquanto, acocorado junto ao rio, segurava maquinalmente a correia do cantil mergulhado na corrente. Mas lembro-me daqueles segundos, gravados em imagens fortes como de um filme visto ontem: o rugido do motor da Berliet sobrepondo-se aos gritos de comando e incitamento, e ao raspar da roda que gira no esforço de se libertar. E, subitamente, o estrondo seco, cavo, atordoante, e a escuridão de onde chovem pedras no ar turvo de poeira. Ponho-me de pé num salto. Atrás de mim está um corpo caído. Não vejo nada, há um ou dois segundos de silêncio logo cortado por gritos e gemidos, rezas, berros lancinantes de dor, pragas de raiva e espanto.
Depois, o filme esfuma-se. Tenho apenas a vaga lembrança de errar por um cenário medonho de corpos da cor da terra, caídos um pouco por todo o lado em posições grotescas, onde o sangue põe manchas avermelhadas, espalhados em torno da Berliet ainda mais adornada e com a roda traseira destruída. Há outras figuras que erram por ali como espectros, tentado perceber o que se passa e lidar com um mundo que subitamente explodiu à nossa volta naquele modorrento início de tarde africana. A mina estava lá, colocada fundo, possivelmente tapada com um pedaço de cimento, e ninguém a detectara.
E então tudo o mais se mistura, e das horas seguintes colho momentos desgarrados: o Silva, olhando-me com ar grave e olhos esbugalhados: "Também você, alferes?" Pela cara eu sentia escorrer o sangue quente que me empapava todo – um qualquer estilhaço ou pedra levara-me uma tira de couro cabeludo. E ele a dizer-me: "O Diabo caçou-nos. Leve a malta daqui para fora, que ele anda por aí à solta." E também o Caetano, caído na picada, agarrando-me num braço: "Ai meu alferes, caminhei tanto para vir morrer neste cu do mundo." Eu dizia-lhe: "Não morres nada", olhando-lhe a cara transformada numa massa em carne viva. Não morreu mas ficou cego de um olho. Tinha vinte anos.
Tínhamos todos vinte anos… Como o Gil. Encontrámos o que restava dele a uns vinte metros dali, no meio do capim, desfeito pelo sopro da mina que o apanhou em cheio no alto da caixa da Berliet.
Lembro-me também da chegada dos helicópteros, precedida de uma ou duas passagens de caças Fiat metralhando as redondezas para desencorajar quaisquer aproveitamentos da nossa fragilidade. Foram precisos quatro "helis" para levar os treze feridos graves. E de como me vieram dizer que o piloto estava relutante em levar os mortos para Mueda, deixando-nos com quatro cadáveres durante o resto do dia, e o mais que durasse a jornada naquele Fevereiro africano. Não sei se era verdade ou não e na altura pouco me interessou saber. E quando me pendurei na cabine do Alouette, com a cabeça entrapada, o camuflado e a cara cobertos do sangue e da merda de todas as guerras, eu não estava a brincar quando berrei que ele ou levava os mortos ou comia uma bazucada no helicóptero que já não saía mais dali. Apesar do meu aspecto, não acredito que me tivesse levado a sério. Mas claro que levou os mortos, mais os feridos, e até nos levaria a nós e às camionetas se pudesse. O português tem bom feitio, quando lhe falam ao coração.
Morto o Gil, era eu quem ficava a comandar a força de Nambude. E então eu vi sessenta homens que me olhavam, alucinados pela tragédia, pela morte que a maioria de nós cheirava pela primeira vez, assim de chofre, num caos de pó, sangue e tripas, e percebi que tinha de os levar de volta para casa, custasse o que custasse. Era eu quem tinha que os tirar dali – eu, que só pedia em silêncio que alguém dali me tirasse.
Então passámos a noite ali mesmo, sob um céu de estarrecer, ouvindo os ruídos da mata, o restolhar dos répteis, o piar dos pássaros nocturnos, o longínquo gargalhar de hienas e o bater do coração no peito. Ninguém deve ter pregado olho. E no dia seguinte, eu puxei-os pela picada fora como a um cortejo de danados. Não o teria feito se eles não me tivessem empurrado a mim, se não me dessem a mim mais força do que a que eu lhes poderia ter dado. Todos nós éramos sobreviventes e todos nós cavalgámos a coluna de volta a Nambude como um cortejo fúnebre, mas também como uma marcha para a vida. Se não fosse eu seria outro, e eles empurraram-me, a mim, que avançava de tronco nu junto aos detectores de minas, a espingarda ao ombro, bebendo goles de cerveja quente e pisando os trilhos suspeitos com louco desdém. Mas, nesse dia, eu sabia que era imortal.
O que me levara, naquele segundo, a retirar a G3 do alto da caixa da Berliet e a desistir de subir para a morte? Naquelas horas, o que terá colocado cada um de nós no lugar onde estava, dando a cada um sortes diferentes? O destino? O acaso? Não sei. Não sei o que existe por aí a comandar estas coisas. Talvez o Silva tivesse razão, e o Diabo andasse por ali à solta.E se hoje recordo os vivos que nessas e noutras horas me ensinaram a coragem e a dignidade de viver, recordo sobretudo os que tanto caminharam para irem morrer na margem de um riacho leitoso naquele recanto perdido, ressequido e tórrido do norte moçambicano, longe de tudo, numa quente tarde africana igual a tantas outras. Nunca os esquecerei.

Polvo que lavas no rio

Castro Verde, Outubro

domingo, 8 de novembro de 2009

Para assinalar a data

Eu não estava lá na noite em que o Muro caíu, há vinte anos. Aliás, nem me lembro bem dessa noite. Na altura, não havia CNN em muitas casas, a começar pela minha, que tinha dois canais e viva o velho. Mas tenho ideia de alguém me telefonar a dizer: "Está tudo doido em Berlim. Estão a dançar em cima do Muro."
Apesar de tudo, foi uma surpresa. Naqueles dias de 1989, em que os acontecimentos aceleravam , ainda estávamos muito viciados na imutabilidade das coisas. Há 40 anos que as fronteiras não mudavam, que nada de essencial mudava. Tinha havido o Solidariedade polaco, o Papa igualmente, as Malvinas entre dois países com McDonald's, haveria a Checoslováquia de veludo, eu sei lá. Estava tudo a desabar. Mas apesar de sabermos isso, não queríamos acreditar que o Mundo tal como o conhecíamos ia acabar, e que afinal aquele muro temeroso era tão fininho.
Ninguém acreditava e, vai-se a ver agora, ninguém queria. Nem a Inglaterra, nem a França. Toda a gente tinha medo de uma Alemanha reunificada, de "um colosso de 80 milhões de habitantes," como se repetia na altura em voz trémula - ainda por cima, 80 milhões de
alemães, santo Deus... Era a memória histórica do monstro.
Extraordinariamente, onde parecia haver menos medo dele era nas paragens que mais tinham sofrido com a besta, nessa Rússia onde Gorbachev assistia impávido ao desmoronar do dominó leste-europeu, ao dissolver do cordão sanitário erguido do Báltico ao Adriático para conter de uma vez por todas a agressão capitalista. Não se sabia bem na altura, mas era por não ter escolha.
A URSS era um gigante com pés de barro, estava falida e não podia sustentar mais aqueles regimes. Nem a ela própria, e à sua suposta super-potência. Era um
bluff. Por essa altura lembro-me de falar com Victor Cunha Rego depois de ele ter feito parte da comitiva de Mário Soares numa visita à URSS. Vinha a cacarejar no seu riso inigualável: "Ó pá, andámos nós com medo daqueles gajos durante estes anos todos...Aquilo está tudo atado por arames. Se nos tivessem invadido, os tanques deles paravam ao fim de dez quilómetros."
Seja como for, nesses dias andávamos angustiados, percebendo que a História se estava a fazer e com medo de não saber acompanhá-la. Nesse dia, há vinte anos, percebemos que ela tivera um momento decisivo. Só houve um dia parecido doze anos depois, a 11 de Setembro de 2001. Num mundo já muito diferente do que era em 1989.